Embora tais pressupostos tenham respaldo científico, não estamos convencidos de que a visão estritamente biológica seja suficiente para esgotar o assunto. “Saúde” não pode ser reduzida a uma relação biológica de causa e efeito. O homem é um ser histórico e, como tal, as questões que lhe dizem respeito devem considerar tal situação. Nesta perspectiva ampliada, a questão da saúde ganha novos contornos.
Estudos acerca dos efeitos do exercício físico regular sobre os indicadores de saúde tendem a realizar uma leitura unívoca. O Dicionário de Ciências Sociais afirma que, desde os gregos, sabia-se que a saúde resultava de um equilíbrio entre o indivíduo e o ambiente. Teorias que prevaleceram no Ocidente a partir do século XIX, resultantes das descobertas de Pasteur e de Koch na bacteriologia, foram responsáveis por esta concepção individualista e mecânica da doença.
Pensamos que uma discussão mais adequada sobre o tema deva inseri-lo em um contexto sócio-histórico mais amplo, o qual é resultado de diferentes formas de organização social.
Diferentes perspectivas, que não se restringem à visão biologicista, buscam apreender a complexidade e as inúmeras relações envolvidas na discussão sobre a saúde.
Ela pode ser vista tanto como ausência de doença, como completo bem-estar físico-psíquico-social (no sentido da Organização Mundial da Saúde). Ou a capacidade de superação de dificuldades físicas, psíquicas, sociais, culturais e simbólicas ou ainda como um padrão normal de comportamento, que se oporia àquele definido como “patológico” (Questão muito bem explorada pelo sociólogo Émile Durkheim no livro As Regras do Método Sociológico, cap.2).
Marilena Gentil, por sua vez, resgata o conceito de “campo de saúde”, proposto pelo canadense Marc Lalonde, o qual propõe quatro amplos componentes, que interagem entre si: a biologia humana, o meio ambiente, o estilo de vida e a organização da atenção à saúde. Estes seriam os componentes identificados nas causas e fatores básicos de morbidade e de mortalidade.
Na década de 70, lembra Gentil, a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários da Saúde, reunida em Alma-Ata, em seu capítulo 1, reafirma que a saúde corresponde a um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade”.
O Dicionário de Ciências Sociais, editado pela Fundação Getúlio Vargas, vê a saúde como a interação de vários fatores - o doente é interpretado como um “organismo total num cenário complexo” (Dicionário de Ciências Sociais, p.1100).
Este enfoque privilegia dois pontos de vista:
Como a saúde e seu oposto, a doença, é entendida em cada cultura.
Tomando como sua causa - ou do seu oposto - a relação entre o indivíduo e o ambiente
Assim como a discussão sobre a saúde envolve a dimensão biológica, social, cultural, econômica, também deve ser considerado o bem-estar mental do indivíduo. Crises decorrentes do sentimento de perda, frustração, despersonalização, alienação, anomia são elementos fundamentais no processo de construção da saúde. Devem ser considerados na análise deste assunto.
A contribuição da Antropologia também é bastante significativa neste debate. Segundo esta ciência, “todo indivíduo possui mecanismos adequados de interpretação do fenômeno da doença e da morte que visam não só a reafirmar os valores de uma dada unidade social e torná-los aceitáveis aos parentes, mas também a propor orientações para a ação curativa ou preventiva” (FGV - autor).
Houve quem mostrasse a semelhança entre a concepção infecciosa da doença causada por germes que se estabeleceu nos séculos XIX e XX e a idéia de possessão demoníaca ou penetração de espíritos em vigor na civilização ocidental durante a Idade Média e em comunidades primitivas e camponesas.
Faz pouco sentido centrar a idéia de saúde na dimensão estritamente orgânica, física ou biológica. “Saúde” não é um conceito universal, ao contrário, varia sob distintas condições sociais. (Ela se refere a um processo, o qual resulta das possibilidades sociais, culturais, econômicas, políticas, por exemplo, acesso ao trabalho, aos serviços de saúde, à moradia, à alimentação, ao lazer).
Falar sobre a saúde significa perguntar sobre quem tem acesso a ela. Sua promoção está vinculada ao desenvolvimento econômico e à distribuição de renda. A incidência de doenças varia segundo a classe social, o grupo étnico, o universo urbano e rural, a constituição da família, o desempenho dos diferentes papéis sociais, os processos de socialização, a violência, as condições de trabalho.
Há uma relação bastante estreita entre as doenças e as novas necessidades introduzidas pela sociedade industrial. A dinâmica deste universo faz emergir novas questões e demandas - o discurso ecológico, a disseminação das perturbações mentais, as dificuldades de acesso aos bens e serviços, os problemas de comunicação, o aumento da competitividade, questões que direta ou indiretamente relacionam-se ao mundo da saúde. “A existência humana não mais é incorporada num universo significativo, mas resulta numa atitude instrumental reforçada e interiorizada por um sistema social baseado na funcionalidade, na eficácia, na produtividade e no lucro”. (Dicionário de Ciências Sociais, p. 1100).
Na visão de Gentile, a promoção da saúde corresponde a um processo que permite às pessoas adquirir maior controle sobre sua própria saúde e, ao mesmo tempo, procurar melhorá-la. A autora conceitua saúde como a magnitude em que um indivíduo ou grupo podem, por um lado, realizar suas aspirações e satisfazer suas necessidades e, por outro, mudar seu entorno ou enfrentá-lo. Percebe-se neste conceito a preocupação em resgatar a dimensão e articular as dimensões sociais, pessoais e físicas.
Palma (2001) cita o trabalho de Rosengren, Orth-Gomer e Wilhelmsen (p.30) o qual mostra, a partir de dados suecos, que a mortalidade é três vezes maior nos trabalhadores não-qualificados do que nos gerentes e altos funcionários. Verificaram, também, que as baixas classes ocupacionais associaram-se com a alta prevalência do fumo, baixa integração social, baixo suporte emocional e baixa capacidade de percepção da própria saúde.
Conceber a saúde de um ponto de vista divorciado das relações de poder significa incorrer em uma leitura ingênua do mundo social.
A sociedade capitalista moderna enfatiza o consumo, a competitividade e o individualismo. Cabe refletir acerca da concepção de saúde imperante nesta sociedade.
Na sociedade de consumo atual, onde o papel desempenhado pelos meios de comunicação de massa é da maior importância, como se coloca o problema da saúde dos indivíduos? Assiste-se hoje, na televisão, nos jornais e em revistas, a uma verdadeira veneração pelo corpo esculpido, belo e sedutor. Este padrão corporal é produzido e difundido pelos veículos de comunicação. Valoriza-se a aparência, a sedução, o fascínio. “A imagem corporal resulta tanto da experiência motora, quanto, e talvez, sobretudo, da sensibilidade sexual motivada pelos desejos, prazeres e sonhos” (Palma, 2001:26).
Seja como objeto, mercadoria ou força de trabalho, o corpo é moldado e aperfeiçoado, tornado apto à produção, domesticado para favorecer o aumento da produtividade (as ginásticas nos locais de trabalho sempre foram acompanhadas do discurso da saúde). As estratégias de venda do corpo, com o surgimento de novos produtos e de novas necessidades, tornam-o, cada vez mais, um produto privilegiado da lógica industrial. Pensemos na formação profissional voltada para a iniciativa privada, onde proliferam as academias, os hotéis, os clubes (lembremos o personal training) os quais reproduzem incessantemente a política voltada para o consumo e para os interesses das indústrias de cosméticos, de equipamentos, de beleza, de lazer.
Palma (2001:27) afirma que embora os discursos empregados utilizem a saúde como aspecto legitimador, a utilização das diferentes técnicas de treinamento físico tem uma preocupação maior com a estética corporal. Cabe questionar se estas estratégias se desenvolvem para melhorar a qualidade da educação física ou se constituem, apenas, em estratégias de mercado. Basta um breve olhar nas dimensões assumidas pelo mercado do corpo, sob a forma de revistas, cirurgias plásticas, programas televisivos, etc.
A lógica do mercado determina o estilo de vida considerado “saudável” bem como os padrões de comportamento e os modelos de corpo que devem ser vendidos e consumidos pelas diferentes classes sociais. A questão parece-nos, estar antes fortemente dominada por um viés ideológico do que, necessariamente, por indicadores de bem-estar e de saúde.
Os programas de promoção da saúde, em larga medida, veiculam interesses eminentemente econômicos, tendo em vista que pessoas com estilos de vida saudáveis aumentam a eficiência e a produtividade do trabalho, reduzindo o absenteísmo, o que garante às organizações o corte de gastos e a otimização de lucros.